O cineasta Richard Linklater fez sucesso há alguns anos com seu épico de formação juvenil Boyhood: da Infância à Juventude (2014), que acompanhava a vida de um garoto filmado desde muito criança até alcançar a adolescência. Agora, em seu mais novo filme, o cineasta volta ao tema da história de formação, porém resgata um período muito específico, mais precisamente o ano de 1969.
Ali, nos subúrbios de Houston, Texas, encontramos o jovem Stanley (voz de Milo Coy), que vive junto a sua numerosa família (pai, mãe e mais cinco irmãos e irmãs).
Todos daquela região vivem à sombra da NASA, a agência espacial estadunidense que tem sede justamente naquelas imediações. Naquele final de década, os Estados Unidos viviam o auge da corrida espacial e do pensamento científico em larga escalada.
Trata-se de uma animação feita com a técnica de rotoscopia – os atores são filmados em estúdio ou em locações reais e, posteriormente, são desenhados e animados digitalmente. Com isso, os movimentos e as ações dos personagens ganham uma naturalidade diferente, ao mesmo tempo que possuem aquela textura da animação feita à mão.
Não é a primeira vez que o cineasta faz esse tipo de trabalho. Já havia lançado Acordar para a Vida (2001), trajetória onírica sobre um homem e seus muitos encontros com diversas pessoas; e O Homem Duplo (2006), trama de ficção científica adaptada da obra de Philip K. Dick. O novo filme, no entanto, por mais que trate de questões da ciência espacial e possua um toque de imaginação, tem os pés do chão, a compor um retrato muito fiel de uma época, filtrado pelo olhar juvenil.
Inventário cultural
Isso explica por que quase metade do filme é dedicado a explorar e mostrar o estilo de vida daqueles jovens naquele lugar, em uma chuva de referências. Linklater faz aqui uma espécie de inventário cultural dos Estados Unidos do final da década de 1960, tanto a partir daquilo que interessava aos jovens da época (entretenimento e diversão), quanto por aquilo que nem sempre era compreendido por eles, mas que compunha a vida política e social do país, com seus costumes e práticas.
Estão lá as brincadeiras e jogos da época – dos fliperamas, parques de diversão até os jogos de tabuleiro; o ambiente escolar marcado pela diversão e pelos rígidos costumes; as muitas referências a filmes, bandas, músicas e discos clássicos; os programas de TV que reuniam todos na sala – e geravam brigas para saber quem escolheria a programação dentre tantas opções; as coleções de cards de jogadores de basebol ou as de revistas Playboy, devidamente escondidas no quarto dos garotos.
No espectro político, antevê-se pela corrida espacial um pouco da disputa tecnológica e ideológica que marcou a Guerra Fria, sempre tendo os russos como inimigos e grandes competidores. A Guerra do Vietnã pairava como uma mazela sobre o país, uma vez que gerava cada vez mais mortes de soldados americanos, enquanto nas ruas se pedia por paz e pelo fim do conflito – e se via, também, um crescente movimento hippie.
Tudo isso perfaz um delicioso retrato de um tempo, um apanhado memorialístico calcado nas experiências pessoais do realizador. O filme assume uma posição didática ao recriar um dado estilo de vida – pontuando coisas muito precisas, desde as teorias da conspiração mais bizarras, como a da sobrevivência de Kennedy depois do atentado que o teria vitimado, ou os hábitos alimentares e domésticos de uma família de classe média no american way of life.
É quase como se o filme documentasse aquele período. Mais interessante ainda é quando se recria, através da animação, alguns episódios históricos ou cenas reais – a maioria deles exibidos na televisão – como as dos protestos contra a guerra ou uma entrevista de Janis Joplin na TV. Apollo 10 e Meio faz isso com maestria, uma vez que o recuo histórico possibilita um olhar mais preciso, e não menos terno, para aquele momento. O filme é narrado, no presente, por um Stanley já adulto (pela voz de Jack Black) que revista sua época de juventude.
Fábula histórica
Toda essa conjunção cultural e histórica, no entanto, está à serviço de um evento que mexeria demais com aquelas pessoas – com o mundo todo, é claro, mas tinha um sabor especial para os texanos: a chegada do homem à lua. Neil Armstrong detém o título desse primeiro ser humano que pisou em solo lunar à bordo da nave espacial Apollo 11; mas a depender da versão de Stanley, não foi bem assim.
Com isso, Linklater perfaz um saboroso jogo de referências que ali tanto uma modelagem da realidade e dos fatos históricos, mas também reserva espaço para a fabulação e a imaginação. O filme faz aquilo que todos nós, um dia, já fizemos: nos projetar em algum feito histórico, em algum acontecimento ou evento real, inalcançável, mas reconstruído na memória pelo poder da imaginação. O que melhor do que o cinema de animação para dar conta de um passo tão grande para a humanidade?