Fome, precariedade no mercado de trabalho e corrosão do poder de compra provocada pela inflação, que se manteve em dois dígitos durante quase um ano, ainda desafiam o discurso do presidente Jair Bolsonaro (PL), em campanha pela reeleição, sobre o Brasil ressurgir com uma economia pujante.
Apesar de dois meses seguidos de deflação (queda de preços) puxada pela redução das alíquotas de ICMS sobre combustíveis e energia elétrica, o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) acumula alta de 8,73% em 12 meses.
O aumento no custo da alimentação no mesmo período chegou a 13,43%, embora o ritmo de elevação tenha perdido força em agosto (0,24%).
Comida cara castiga sobretudo os mais pobres. Nem sempre o cardápio do almoço ou do jantar vai além do prato de arroz e feijão na casa de Francisca Maria do Nascimento Bezerra, a Dona Caçula.
“Às vezes, a gente acha [carne] na lixeira e come, mas quando é para comprar, só de mês em mês, compra um frango, toucinho. Carne vermelha não dá para comprar, não”, conta a mulher que vive em situação de vulnerabilidade e desinfeta o alimento tirado do lixo com limão e vinagre antes do consumo.
Caçula paga R$ 200 mensais em um apartamento em um conjunto de baixa renda em Brasília. Para trabalhar como catadora de materiais recicláveis, no entanto, acaba vivendo com o marido ao lado de outras famílias em uma ocupação no Noroeste.
Aos 55 anos, ela ganha até R$ 350 por mês com o que recolhe de bicicleta pelas ruas. Como seu marido recebe o BPC (Benefício de Prestação Continuada), que paga um salário mínimo a idosos de baixa renda e pessoas com deficiência –caso do marido de Caçula–, ela não tem direito ao Auxílio Brasil.
“O rapaz que compra o material está falando que vai baixar cada vez mais, as coisas vão ficar mais difíceis, tudo subindo, arroz, óleo e feijão são muito caros” diz a catadora.
A história de Caçula e seus vizinhos mostra uma realidade diferente da expressa por Bolsonaro, que disse que não existe “fome para valer” no Brasil.
Em discurso nas comemorações do dia 7 de Setembro em Brasília, o presidente chegou a dizer: “Quando parecia que tudo estaria perdido para o mundo, eis que o Brasil ressurge, com uma economia pujante, com uma gasolina das mais baratas do mundo, com um dos programas sociais mais abrangentes do mundo, que é o Auxílio Brasil, com recorde na criação de empregos, com inflação despencando”.
O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), indicou que 33 milhões de pessoas passam fome no país.
“A insegurança alimentar, que é um problema de saúde pública e compromete o futuro da sociedade, está relacionada a diversas causas. O desemprego, a queda do rendimento médio das famílias e a inflação estão entre elas”, afirmou o sociólogo Rogério Baptistini, professor do CCSA (Centro de Ciências Sociais e Aplicadas) da Universidade Mackenzie.
A comida cara tem levado a classe média a mudar seus hábitos de compra. Elis Regina Dias de Assis, servidora pública, está sempre atenta a promoções e não se apega a marcas na hora de escolher os produtos.
Com a alta dos preços, diminuiu o consumo de carne vermelha, tem evitado comprar feijão e passou a fazer pão caseiro. Vez ou outra, leva para casa uma caixa de leite.
O orçamento mais apertado levou Elis Regina a mudar o plano na academia, a deixar o carro próprio encostado na garagem e ir ao trabalho de transporte público. Buscou um apartamento com aluguel mais barato, ainda que mais distante.
“Seis salários mínimos antigamente era algo bom, já não é mais. Meu padrão de vida diminuiu, sim. Agora, a gente tem de pensar bem antes de comprar muita coisa”, afirma.
O economista Heron do Carmo, professor da FEA-USP (Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo), ressalta que, “mesmo que a inflação dê um certo alívio daqui por diante, não dá para [o consumidor] esquecer o saldo dos aumentos anteriores”.
Os preços dos alimentos estão indiretamente ligados aos dos combustíveis. O litro da gasolina ficou mais barato no Brasil em meio ao corte de ICMS. O movimento de baixa, contudo, não foi acompanhado no mesmo ritmo pelo diesel, afetado por um descompasso entre oferta e demanda mundial em decorrência da Guerra da Ucrânia.
Flávio Console, no ramo de transporte de cargas desde 1994, sofre com a queda da sua margem de lucro nos últimos meses. Está decidido a vender sua “segunda casa”, um caminhão que o acompanha há 12 anos.
“Tempos atrás, o nosso custo de combustível por viagem era em torno de 40%. Só de combustível, hoje chega a 60% do valor do frete”, disse o motorista, ao preparar-se para pegar a estrada rumo a Araguari (MG), levando soja para exportação.
O auxílio distribuído pelo governo aos caminhoneiros em seis parcelas de R$ 1.000 mensais até dezembro não é suficiente para fazer Console desistir de abandonar as estradas.
Na visão de especialistas, outro ponto sensível politicamente para a gestão Bolsonaro é a precarização do mercado de trabalho.
Embora a taxa de desemprego tenha recuado para 9,1% no trimestre encerrado em julho, o número de trabalhadores informais chegou a 39,3 milhões, de acordo com a Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), divulgada pelo IBGE.
Ele trabalhou durante três anos na limpeza e mais um na jardinagem, como operador de micro trator, em uma empresa de serviços gerais. Viu a carga de trabalho aumentar após corte de 50% do pessoal durante a pandemia até ter seu contrato rescindido.
“Moro de aluguel, tenho minha esposa, meu filho. A gente vai fazendo do jeito que consegue”, afirma. Em agosto, recebeu a última parcela do seguro-desemprego de R$ 1.200. A queda da renda nos próximos meses preocupa Cardoso, pai de um menino de 2 anos.