Quando os primeiros cafeicultores chegaram, há mais de 30 anos, ao Cerrado Mineiro, muitos produtores tradicionais duvidaram do potencial da região. Afinal, uma planta tão delicada como o café, que exige solo bastante fértil e temperaturas amenas, jamais poderia prosperar entre os “paus tortos” da região.
Em pouco mais de três décadas, entretanto, a empreitada conquistou a Denominação de Origem (DO). Ou seja, assim como o champanhe e o queijo Roquefort, os grãos que saem dali não podem ser produzidos em qualquer outro lugar do mundo. O selo provou que a ideia maluca deu certo. Inspirados por esse sucesso, fazendeiros goianos decidiram se arriscar nessa cultura e já colhem frutos do esforço.
O café Famiglia Zancanaro, da Fazenda Nossa Senhora de Fátima, em Cristalina (GO), começou a ser plantado em 2009 e acumula prêmios Ernesto Illy, um dos reconhecimentos mais antigos e importantes da cafeicultura. Em 2016, a família conquistou o primeiro lugar na categoria Centro-Oeste. No ano seguinte, ficou na segunda colocação regional. No início de 2018, atingiu duas marcas históricas: repetiu a condecoração doméstica e alcançou a sexta posição na classificação nacional.
À frente da empreitada em Cristalina, está a advogada Cristiane Zancanaro. No final de 2013, ela era a responsável pelos contratos da empresa da família. Ao retornar de sua terceira licença-maternidade, veio o desafio do irmão mais velho: já que gostava tanto de café, por que não conciliar o escritório com o cultivo do grão na fazenda? Carregando debaixo do braço um livro sobre o combate de pragas da planta, rumou a São Paulo para fazer um curso de barista.
A advogada voltou a Brasília com a pulga atrás da orelha. A família só produzia commodity – grão processado sem maiores cuidados, comercializado pelas grandes marcas do país. “Desconfiei que estávamos vendendo um produto especial como algo comum. Foi puro feeling. Mandei o café para uma pessoa avaliar e ele fez 83 pontos”, lembra. Para ser considerada especial, a bebida deve obter pelo menos 80.
Visando aprimorar o processo produtivo, Cristiane convidou o gerente de qualidade Carlos Alberto Vieira. Com 27 anos de experiência no Cerrado Mineiro, o patrocinense chegou para agregar conhecimentos e dar ritmo à cadeia produtiva. “Em Goiás, o café não tem uma década de lavouras. O clima é muito bem definido e, por se tratar de um terreno plano, conseguimos mecanizar quase 100% da produção. A região será um novo polo para a cafeicultura”, avalia o especialista.
A Fazendinha, como é chamada pelos filhos do Gelci Zancanaro, foi adquirida pela família em 1983. Dois anos depois, o patriarca se mudou com a prole de Cascavel (PR) para Brasília. Daquela terra, ainda saem legumes e verduras, mas a opção pelo café foi feita por causa da variação de preços da commodity. O lucro não é tão grande quanto o da cebola, por exemplo, mas o valor do produto não tem alterações dramáticas. “É mais estável, você consegue manter uma média de preços que o hortifrúti não tem”, explica Carlos.
m Niquelândia (GO), a cerca de 400 quilômetros da propriedade dos Zancanaro, Álvaro Luiz Orioli produz outro café premiado pela Illy: o produto levou o primeiro lugar regional em 2017.
“Só ganhei esse porque foi o único do qual participei. Mas nós pretendemos concorrer em outros. Minha esposa, que é a incentivadora dessa produção na fazenda, ficou muito emocionada. Isso a inspirou a buscar mais qualidade para o nosso grão”, lembra o cafeicultor.
O casamento com Lucinéa Orioli já dura 37 anos, dos quais 13 foram permeados pelo cafezal. “Realmente parece um matrimônio, você se envolve com o café e sua cultura perene. Não tem como mudar a plantação, o investimento é muito alto, tem que encarar o desafio. Mas isso se mostrou muito prazeroso, de forma alguma foi um sacrifício. Muito pelo contrário, sempre achei uma atividade gratificante”, descreve o produtor.
Apesar dos 150 hectares de lavoura, na Fazenda Bagagem só se planta café arábica. O grão especial chega a 40% da colheita, a depender da safra, e metade da produção fica no Brasil.
A previsão de estoque para 2018 no estado é de 158,4 mil sacas de 60kg. Os vizinhos de Minas Gerais colherão muito mais: somente na região do Cerrado Mineiro, esperam-se 6,9 milhões de sacas. A produção nas terras goianas, no entanto, está se ampliando: Goiás detém o maior aumento de cafezais do país, com 19,2% de taxa de crescimento entre 2017 e 2018.
Trem bão demais
Minas Gerais tem a maior cidade produtora de café do país: Patrocínio, casa da Federação dos Cafeicultores do Cerrado. A área, composta 55 municípios, apesar de não ser uma região pioneira de plantação no Brasil, é a única que detém uma Denominação de Origem.
A conquista histórica não veio sem dificuldades, que começaram com a imigração de paranaenses e paulistas ao Cerrado. Em julho de 1975, os cafezais do Paraná sofreram com a Geada Negra – a intempérie queimou lavouras e causou forte impacto na produção cafeeira. Os agricultores do sudeste, por sua vez, enfrentaram o nematoide, praga que ataca a raiz da planta. Com incentivo fiscal do governo para adquirir terras em regiões de solos pobres, muitos produtores encararam o desafio em Minas Gerais.
Diferentemente dos outros estados brasileiros, esse pedaço de Minas tem uma característica especial: o esforço conjunto de cafeicultores garantiu a superação dos obstáculos técnicos apresentados pelo Cerrado. Os produtores trocavam figurinhas sobre variedades da planta adaptadas ao terroir, além de processos de correção de solo e fertilização. “A dificuldade que enfrentamos no começo criou um senso associativista e cooperativista muito forte. Inovamos a cafeicultura brasileira e unimos agricultores com o objetivo comum de desenvolver a região”, descreve o superintendente da federação, Juliano Tarabal. – Por CLARA CAMPOLI